#EUNÃOMEREÇOSERESTUPRADA
A recente pesquisa divulgada pelo IPEA “Estupro no Brasil: uma radiografia da violência” teve um papel pedagógico nas discussões
públicas sobre o tema da violência sexual no Brasil. Trouxe para luz do
dia a obtusidade agressiva e animalesca que se esconde nos porões da
consciência individual de muita gente. Detectou concepções que revelam
completa incapacidade de alguns para viver em sociedades, seja qual for
seu grau de educação formal.
Um dado importante da pesquisa, dentre outros igualmente fundamentais
para entender ou estimar em que ponto está a percepção do brasileiro
sobre as condições de violência contra mulher, diz respeito à ideia de
que a culpa pela violência sexual sofrida pela mulher reside nela mesma,
em particular pelo modo como se veste.
Ao serem perguntados se mulheres que usam roupa mostrando o corpo
merecem ser atacadas, nada menos que 65,1% dos entrevistados afirmaram
que sim, concordavam total ou parcialmente com a afirmação. Mais ainda.
Para 58,2% dos pesquisados, se a mulher soubesse se comportar, haveria
menos estupros.
Os números ganharam repercussão nas redes sociais e um movimento
#NãoMereçoSerEstuprada iniciado pela jornalista Nana Queiroz ajudou a
disseminar o debate, nem sempre com opiniões razoáveis. Segundo Nana,
“amanheci de uma noite conturbada. Acreditei na pesquisa do Ipea e
experimentei na pele sua fúria. Homens me escreveram ameaçando me
estuprar se me encontrassem na rua, mulheres escreveram desejando que eu
fosse estuprada”. Nana, no entanto, ganhou reforço de peso na sua luta
corajosa. A presidenta Dilma Roussef usou seu twitter para apoiá-la. E
mais recentemente personagens como Daniela Mercury emprestaram sua
imagem em um nítido apoio ao movimento.
Ao mesmo tempo em que a pesquisa do IPEA ganhou tanta repercussão, uma nota técnica
também do instituto, e que infelizmente não ganhou a mesma
visibilidade, divulga números essenciais para evidenciar que a percepção
da culpabilidade feminina pela agressão sexual sofrida é apenas isso,
uma percepção, e está anos luz da brutal realidade, em termos de
violência sexual, de fato vivenciada pelas mulheres. O submundo de
abusos mostrado por essa nota é bem mais alarmante.
O estudo foi produzido a partir dos dados do Sinan (Sistema de
Agravos de Notificação) [dá para gerar os relatório aqui] base gerenciada pelo Departamento de análise de
Situação de Saúde, vinculado ao Ministério da Saúde. Em 2011, as
notificações tratando de violência doméstica e sexual foram incorporadas
ao sistema. Apoiando-se nelas, os pesquisadores debruçaram-se para
trazer à tona um diagnóstico que foge do senso comum sobre a violência
sexual praticada contra a mulher.
Como já esperado, a quase totalidade das vítimas de abusos sexuais é
mulher, sendo 88,5%. Entretanto, um dado valioso, diz respeito à faixa
etária. Nada menos que metade das vítimas são crianças até 13 anos de
idade. Se somados com jovens e adolescentes de 14 a 17 anos (19,4% do
total) crianças e adolescentes perfazem o total de pouco mais de 70% das
vítimas. Bem, o que não surpreende é que quase 100% dos agressores
sejam homens.
Se 70% dos agredidos são crianças, jovens e adolescentes, cabe uma
questão. Onde essa violência ocorre? Se você fez essa pergunta,
provavelmente já tem a resposta. É no lar. Dentro de casa. São 79% dos
casos entre crianças; 67%, entre adolescentes e 65% dos casos entre
adultos. E se você chegou até aqui, saiba que poderá se assustar um
pouco mais. Entre crianças, apenas 12,6% dos casos de violência são
praticados por desconhecidos. Isso mesmo. Os atos de violência sexual
praticados contra criança acontecem na inviolabilidade do lar, por
pessoas conhecidas ou muito próximas das vítimas. Os números se
distribuem do seguinte modo: em 11,8% dos casos, o agressor é o pai;
12,3%, o padrasto; 7,1%, namorado; por fim, 32,2% amigo.
Ou seja, o perigo não mora ao lado mas, literalmente, dentro de casa.
Se somados, parentes, amigos e conhecidos são 63,4% dos agressores de
crianças. Não custa lembrar, metade das vítimas.
Naturalmente, não se pode dizer que crianças se vistam de um modo
provocativo ou tenham comportamento sedutor a tal ponto que leve as
pessoas mais próximas a elas a distúrbios emocionais que resultem em um
impulso para a prática de violência sexual. Tudo isso se torna
estarrecedor, porque essas vítimas podem sofrer violência durante anos a
fio, sem a possibilidade de manifestação do seu martírio.
Isso significa que a resposta positiva dos brasileiros sobre roupas
ou comportamentos como determinantes do estupro está calcada numa
terrível ignorância que, se por um lado esconde a realidade tal como é,
também serve de conveniente sonífero. Sua função é evitar que nossa
sociedade se depare com uma visão terrível: há um mundo de mutilação
física e psicológica acontecendo debaixo de nossos tetos, envolvendo
maridos, ex-maridos, amantes, amigos, conhecidos, e não sabemos
absolutamente o que fazer. Parodiando Zé Geraldo, tudo isso acontecendo e
a gente aqui na praça dando milho aos pombos.
O estudo conclui com outro dado igualmente assustador. Estima-se que
mais de meio milhão de pessoas são estupradas no Brasil anualmente.
Dessas, apenas 10% dos casos chegam à polícia. As razões para isso devem
ser evidentes, dado que o aparato policial não está preparado para
lidar de forma humana com essas mulheres. Os números desse estudo
deveriam ser mais aprofundados e deveriam articular entes públicos e a
sociedade para enfrentar e quebrar, de forma corajosa, esse pacto de
silêncio que insiste em vitimizar todos nós.
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Retirado de: http://www.cartacapital.com.br/blogs/outras-palavras/estupro-onde-mora-o-perigo-6452.html
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